" Se eu fosse uma pipa eu queria ser cortada.
Assim, ficaria livre pra voar, voar pra onde eu quisesse ir
e ainda que uma hora eu tivesse que cair, aqueles
segundos de liberdade já me teriam valido a pena. "
jéssica freire
Teve um dos melhores anos de sua infância ao morar no Engenho de Dentro, bairro
do Rio de Janeiro. Lá, nos altos da rua Mário Calderaro num terreno em
aclive, onde havia a bonita casa de seus tios e primos. Na parte alta do terreno, bem
ao fundo, em uma edícula "asso(m)bradada", "seu" José e "dona" Palmira,
um simpático casal de portugueses moravam.
A edícula rodeada de muitas folhagens, flores e com seus "estranhos" moradores,
parecia saída de um conto de fadas pois o sotaque, o modo de vestirem-se e as
mágicas que faziam para ele eram diferentes e divertidas, impressionando-o muito.
Ele, que na maior parte de sua infância sempre morou com parentes, afastado do
convívio dos pais e irmãs, sentia-se um banido, um proscrito. Mas lá na casa de
seus tios, lá nos altos de um outeiro, viveu um ano em que soube o que era
ser amado, ser querido, fazer parte de uma família. Um ano.
Suas primas. A primogênita, sua parceira em aborrecer a menor. Planos bem
bolados e que quase sempre davam errado, pois com o choro da menina,
traziam broncas e castigos aos dois. Seu primo, o mais novo membro da família
e hoje piloto de caça da FAB, era de colo e por isso intocável. Sorte dele.
O relógio. Tem que falar dele. Um carrilhão de mesa que além de soar as horas
e os quarto de horas, fazia um tic-tac terrivelmente alto. Era movido à corda
e ficava sobre um móvel ao canto da sala de estar, onde ele dormia em um sofá.
Bem, ele só dormia depois de abafar os sons com almofadas e cobertores.
Sua Tia. Irmã mais nova de sua Mãe, era sua preferida. Fala rápida e sempre de
bom humor, tratava-o como um filho até mesmo quando ele fazia algo errado.
Ajudou-o a entender sua vida explicando-lhe os "porquês" e os "senões".
Sábia, mostrou a ele como viver bem, aceitando os revezes apenas como simples
obstáculos a serem superados. Ele guardou como herança, seus ensinamentos.
Seu Tio. Todos adorariam ter um Tio como aquele. Justo, alegre, bom ouvinte
e conselheiro, um verdadeiro Pai para um menino banido, companheiro nas
brincadeiras e mestre na arte de construir e empinar as, quadradas, pandorgas,
papagaios, pipas ou também conhecidas por um nome que o fazia rir muito: cafifa.
E foi assim que seu tio passou a chama-lo quando iam soltar ao vento as pipas
no terraço sobre a garagem:
"Vamos, Cafifa! Vamos aproveitar o vento! Vamos ver se essa vai voar! "
E saía correndo pela casa em direção ao terraço, com ele pulando de alegria à
sua volta. E todas as pipas voaram longe e alto.
As cafifas. Criadas como em um passe de mágica. Varetas de bambu e folhas
de papel de seda eram transformadas em obras de arte voadoras. Incríveis
estrelas, círculos, quadrados, retângulos, pássaros e em muitas outras formas.
Causavam inveja aos meninos da redondeza, eram atrações ao cortar os
ares ao sabor dos ventos. Sempre subiam aos céus. Eram lindas preces que
agradeciam o milagre de mais um belo dia.
Lembranças. Caras lembranças, alegres e por sua intensidade, nítidas em
seu coração. Seus Tios partiram, seu primo e primas constituíram família em
distantes lugares. Embora distantes, permanecem as recordações presentes em
sua vida, em suas memórias.
carlos miranda (betomelodia) ™
fontes
imagem: arquivo pessoal - texto: carlos miranda (betomelodia)
base das pesquisas: arquivo pessoal / meus escritos